Engels a Conrad Schmidt<br>(em Berlim)

Selecção: Francisco Melo
Tradução: José Barata-Moura

[…] Vi o livro de Paul Barth (1) re­cen­seado na Deustche Worte (2) de Viena pela ave de mau agoiro Mo­ritz Wirth, e esta crí­tica deixou-me uma im­pressão des­fa­vo­rável do pró­prio livro. Vou dar-lhe uma vista de olhos, mas tenho que dizer que, se o Mo­rit­zinho o cita cor­rec­ta­mente quando Barth [diz] que em todos os es­critos de Marx o único exemplo que pode en­con­trar da de­pen­dência da fi­lo­sofia, etc., das con­di­ções ma­te­riais de exis­tência é que Des­cartes de­clara que os ani­mais [são] má­quinas, um homem que pode es­crever uma coisa destas me faz pena. E se o homem ainda não des­co­briu que, se o modo ma­te­rial de exis­tência é o primum agens (3), isso não ex­clui que o do­mínio ideal exerça de novo sobre ele uma in­fluência [Einwir­kung] de re­acção, mas se­cun­dária, ele não pode pos­si­vel­mente ter com­pre­en­dido o ob­jecto [Ge­gens­tand] sobre que es­creve. Mas, como foi dito, isto é tudo de se­gunda mão, e o Mo­rit­zinho é um amigo de­sas­troso [fa­taler Freund]. Além disso, há hoje um con­junto [de pes­soas] para quem a con­cepção ma­te­ri­a­lista da his­tória serve de pre­texto para não es­tu­darem his­tória. Exac­ta­mente como Marx dizia dos «mar­xistas» fran­ceses do fim dos anos 70: «Tout ce que je sais, c’est que je ne suis pas Mar­xiste(4)

Houve também uma dis­cussão no Volks-Trib[üne] acerca da re­par­tição dos pro­dutos na so­ci­e­dade fu­tura, sobre se ela de­verá acon­tecer se­gundo o quantum (5) de tra­balho ou de outra ma­neira (6). Abordou-se a coisa também muito «ma­te­ri­a­lis­ta­mente» contra certos fra­se­ados ide­a­listas sobre a jus­tiça. Mas, es­tra­nha­mente, não ocorreu a nin­guém que o modo de re­par­tição [Ver­tei­lungs­modus] de­pende to­davia es­sen­ci­al­mente de quanto [é que] há para re­partir e que, por certo, isso se al­tera com os pro­gressos da pro­dução e da or­ga­ni­zação so­cial, de­vendo, por­tanto, al­terar-se também, por certo, o modo de re­par­tição. Mas, a todos os par­ti­ci­pantes a «so­ci­e­dade so­ci­a­lista» não apa­rece como uma coisa com­pre­en­dida numa con­tínua trans­for­mação e pro­gresso, mas como uma coisa es­tável, fi­xada de uma vez por todas, que, por­tanto, deve ter também um modo de re­par­tição fi­xado de uma vez por todas. De um modo ra­ci­onal, porém, pode-se, con­tudo, apenas 1. tentar des­co­brir o modo de re­par­tição com que se co­me­çará e 2. pro­curar en­con­trar a ten­dência geral em que o ul­te­rior de­sen­vol­vi­mento se move. Sobre isto, porém, não en­contro uma pa­lavra em todo o de­bate.

A pa­lavra [o ad­jec­tivo] «ma­te­ri­a­lista [ma­te­ri­a­lis­tich], na Ale­manha, serve, em geral, a muitos es­cri­tores jo­vens de sim­ples frase com que eti­quetam, sem ul­te­rior es­tudo, tudo e mais al­guma coisa, isto é, colam esta eti­queta e, então, crêem ter re­sol­vido a coisa. A nossa con­cepção da his­tória, porém, é, antes de tudo, um guia [eine An­lei­tung] para o es­tudo, [não é] ne­nhuma ala­vanca de cons­tru­ções à la (7) he­ge­li­a­nagem [He­ge­li­a­nertum]. A his­tória toda tem que ser es­tu­dada de novo, as con­di­ções de exis­tência [Da­seins­be­din­gungen] das di­versas for­ma­ções so­ciais [Ge­sells­chafts­for­ma­ti­onen] têm que ser in­ves­ti­gadas em por­menor, antes de se tentar de­duzir a partir delas os modos de ver [Ans­chau­ungsweise] po­lí­ticos, de di­reito pri­vado, es­té­ticos, fi­lo­só­ficos, re­li­gi­osos, etc., que lhes cor­res­pondem. Re­la­ti­va­mente a isto, até agora, só pouco acon­teceu, porque só poucos se dis­pu­seram se­ri­a­mente a isso. Re­la­ti­va­mente a isso, nós pre­ci­samos de [uma] ajuda em massa, o do­mínio é in­fi­ni­ta­mente grande e quem quiser tra­ba­lhar se­ri­a­mente pode con­se­guir muito e dis­tin­guir-se. Em vez disto, porém, a frase ma­te­ri­a­lismo his­tó­rico ([e], pre­ci­sa­mente, de tudo se pode fazer uma frase) serve a muitos jo­vens ale­mães apenas para cons­truir or­de­nada e sis­te­ma­ti­ca­mente [sys­te­ma­tisch zu­re­cht­zu­kons­truiren], o mais ra­pi­da­mente pos­sível, os seus pró­prios co­nhe­ci­mentos his­tó­ricos re­la­ti­va­mente parcos — a his­tória eco­nó­mica ainda anda de cu­eiros! —, e para pa­re­cerem de­pois muito for­mi­dá­veis. E então pode, pois, vir um Barth e atacar a coisa mesma que, pelo menos no seu meio [Um­ge­bung], fora de­gra­dada a mera frase.

No en­tanto, tudo isto se re­sol­verá. Na Ale­manha, nós es­tamos agora su­fi­ci­en­te­mente fortes para poder su­portar muito. Um dos mai­ores ser­viços que a lei dos so­ci­a­listas (8) nos fez foi li­bertar-nos da im­por­tu­ni­dade do es­tu­dioso [Stu­di­osus] alemão com bafos de so­ci­a­lismo [so­zi­a­lis­tisch an­gehauscht]. Es­tamos agora su­fi­ci­en­te­mente fortes para poder também di­gerir o es­tu­dioso alemão, que de novo se arma em im­por­tante. V. — V. que re­al­mente já re­a­lizou al­guma coisa — teve V. mesmo que ter ob­ser­vado quão poucos dos jo­vens li­te­ratos que se li­garam ao Par­tido se dão ao tra­balho de se en­tre­garem à Eco­nomia, à His­tória da Eco­nomia, à His­tória do Co­mércio, da In­dús­tria, da Agri­cul­tura, das For­ma­ções So­ciais. Quantos co­nhecem de Maurer (9) mais do que o nome? A su­fi­ci­ência do jor­na­lista ha­veria aqui que chegar para tudo e, [os re­sul­tados] são também a con­dizer. Muitas vezes, é como se esses se­nhores acre­di­tassem que, para os ope­rá­rios, qual­quer coisa é boa. Se esses se­nhores sou­bessem como Marx sus­ten­tava que as suas me­lhores coisas ainda não eram su­fi­ci­en­te­mente boas para os ope­rá­rios, como ele en­ca­rava como um crime ofe­recer aos ope­rá­rios algo de in­fe­rior ao me­lhor de tudo!...

 

Pu­bli­cado pela pri­meira vez na ín­tegra na re­vista So­zi­a­lis­tiche Mo­natshefte n.os 18-19, 1920. Pu­bli­cado se­gundo o texto do ma­nus­crito. Tra­du­zido do alemão.

 

Notas

(1) Trata-se do livro de Paul Barth Die Ges­chi­chtsphi­lo­sophie He­gels und He­ge­li­aner bis auf Marx und Hart­mann (A Fi­lo­sofia da His­tória de Hegel e dos He­ge­li­anos até Marx e Hart­mann), pu­bli­cado em Leipzig em 1890.

Paul Barth (1858-1922): fi­ló­sofo e so­ció­logo alemão, pro­fessor da Uni­ver­si­dade de Leipzig.

(2) Deutsche Worte (A Pa­lavra Alemã): re­vista de eco­nó­mica e po­lí­tico-so­cial aus­tríaca que se pu­blicou em Viena de 1881 a 1904. O ar­tigo de Mo­ritz Wirth «A ar­bi­tra­ri­e­dade em re­lação a Hegel e as Per­se­gui­ções contra ele na Ale­manha Ac­tual» foi pu­bli­cado em 1890, no n.º 5 da re­vista.

Mo­ritz Wirth (1849-m. de­pois de 1916): eco­no­mista e pu­bli­cista alemão.

(3) Em latim no texto: pri­meiro agente, pri­meira causa.

(4) Em francês no texto: «Tudo o que eu sei é que não sou Mar­xista.»

(5) Em latim no texto: quan­ti­dade.

(6) Ber­liner Volks-Tribüne (Tri­buna Po­pular de Berlim): se­ma­nário so­cial-de­mo­crata, li­gado ao grupo anar­quista dos «jo­vens», pu­blicou-se de 1887 a 1892.

Os ma­te­riais re­fe­rentes à dis­cussão em torno da questão «A cada um o pro­duto in­te­gral do seu tra­balho» foram pu­bli­cados no jornal de 14 de Junho até 12 de Julho de 1890.

(7) Em francês no texto: à ma­neira de.

(8) Trata-se da lei de ex­cepção contra os so­ci­a­listas pro­mul­gada na Ale­manha em 21 de Ou­tubro de 1878. Em vir­tude desta lei foram proi­bidas todas as or­ga­ni­za­ções do Par­tido So­cial-De­mo­crata, as or­ga­ni­za­ções ope­rá­rias de massas, a im­prensa ope­rária, foi con­fis­cada a li­te­ra­tura so­ci­a­lista e per­se­guidos os so­ciais-de­mo­cratas. Por pressão do mo­vi­mento ope­rário de massas a lei foi abo­lida a 1 de Ou­tubro de 1890.

(9) Georg Ludwig Maurer (1790-1872): his­to­ri­ador alemão, in­ves­ti­gador do re­gime so­cial da Ale­manha an­tiga e me­di­eval.

 



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